quarta-feira, 11 de junho de 2008

A OFERTA DE MANJARES: CRISTO NA SUA HUMANIDADE

Notas Sobre o Pentateuco C.H. Mackintosh

— CAPÍTULO 2 —

Vamos considerar agora a oferta de manjares, que, de uma maneira muito clara, apresenta Cristo Jesus como Homem. Assim como o holocausto simboliza Cristo na morte, a oferta de manjares representa-O na vida. Nem num nem no outro se trata da questão de levar o pecado. No holocausto vemos expiação, mas não é uma questão de levar o pecado (1) — não é imputação do pecado — nem manifestação da ira por causa do pecado. Como podemos saber isto? Porque tudo era consumido sobre o altar. Se houvesse nele alguma coisa referente à remoção do pecado teria sido consumado fora do arraial (veja Lv 4:1,12 com Hb 13:11).
Porém, na oferta de manjares nem sequer havia derramamento de sangue. Encontramos nela uma formosa figura de Cristo, como viveu, andou e serviu na terra. Este fato, em si, é suficiente para persuadir a mente espiritual a considerar esta oferta atentamente e com oração. A humanidade pura e perfeita de nosso bendito Senhor é um tema que requer a atenção de todo o verdadeiro crente. É de recear que prevaleça muita liberdade de pensamento sobre este santo mistério. As expressões que às vezes se ouvem e se lêem bastam para provar que a doutrina fundamental da encarnação não é compreendida como a Palavra de Deus no-la apresenta. Tais expressões podem, muito provavelmente, proceder de uma má compreensão da natureza verdadeira das Suas relações e do verda­deiro caráter dos Seus sofrimentos; mas seja qual for a causa que lhes dá origem, devem ser julgadas à luz das Sagradas Escrituras e rejeitadas. Infalivelmente, muitos dos que fazem uso dessas expres­sões recuariam como horror e justa indignação ante a verdadeira doutrina que elas encerram, se esta fosse exposta perante eles no seu verdadeiro e extenso caráter; e, por esta razão, deve haver o cuidado de não atribuir erro à verdade fundamental, quando pode muito bem ser apenas incorreção de linguagem.

____________
(1) Não se salienta a idéia de levar o pecado. Mas, claro, quando há expiação existe a questão de pecado.

Existe, contudo, uma consideração que deve pesar grandemente nas apreciações de todo o cristão, a saber: a natureza vital da doutrina da humanidade de Cristo. Encontra-se no próprio funda­mento do cristianismo; e, por esta razão, Satanás tem procurado diligentemente, desde o princípio, induzir as pessoas em erro a este respeito. Quase todos os erros principais que se têm introduzido na igreja professa revelam o propósito satânico de minar a verdade quanto à pessoa de Cristo. E até homens piedosos ao pretenderem combater esses erros caem, em muitos casos, em erros do lado oposto. Daí a necessidade de prestarmos atenção às próprias palavras de que o Espírito Santo fez uso para revelar este sagrado e profundo mistério.
Na realidade, eu creio que, em todos os casos, a submissão à autoridade das Sagradas Escrituras e a energia da vida divina na alma são os melhores meios de proteção contra toda a espécie de erro. Não são precisos grandes conhecimentos teológicos para preparar uma alma de modo a evitar erros a respeito da doutrina de Cristo. Se a palavra de Cristo habitar abundantemente na alma e "o Espírito de Cristo" estiver nela em poder, não haveria lugar para Satanás introduzir as suas sombrias e horríveis sugestões.
Se o coração se compraz no Cristo das Escrituras, fugirá segura­mente dos falsos Cristos que Satanás lhe apresenta. Se nos alimen­tarmos da realidade de Deus, rejeitaremos sem hesitação as limita­ções de Satanás. Este é o melhor meio de escapar aos enredos do erro, qualquer que seja a sua forma e caráter. "As ovelhas ouvem a sua voz[...] e o seguem, porque conhecem a sua voz. Mas, de modo nenhum, seguirão o estranho, antes fugirão dele; porque não conhecem a voz dos estranhos" (Jo 10:3-5). Não é necessário, de modo algum, estar-se habituado à voz de um estranho para se fugir dele; tudo que precisamos é conhecer a voz do "Bom Pastor". Este conhecimento nos guarda da influência ardilosa de todos os estra­nhos. Portanto, embora me sinta chamado para prevenir o leitor contra sons estranhos, a respeito do mistério divino da humanidade de Cristo, não me parece necessário discutir tais sons, mas procu­rarei antes, pela graça, avisá-lo contra erros, apresentando a doutri­na das Escrituras sobre o assunto.
Poucas coisas há em que revelamos maior fraqueza do que em mantermos uma comunhão vigorosa com a perfeita humanidade de nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso sofremos tanto com a falta de frutos, inquietação, divagações e erro. Se estivéssemos compenetrados, mercê de uma fé simples, da verdade que à direita da Majestade nos céus está um Homem real — Um cuja simpatia é perfeita, cujo amor é insondável, cujo poder é onipotente, cuja sabedoria é infinita, cujos recursos são inesgotáveis, cujas riquezas são inexauríveis, cujo ouvido está sempre atento às nossas petições, cuja mão está aberta a todas as nossas necessidades, cujo coração está cheio de ternura e amor inefável por nós — quanto mais felizes e elevados seríamos e quanto mais independentes dos meios corren­tes da criatura estaríamos, fosse qual fosse o canal por onde viessem"? Não há nada que o coração possa desejar que não tenhamos em Jesus. Suspira por verdadeira simpatia"? Onde poderá encontrá-la senão n'Aquele que pôde juntar as Suas lágrimas às das desoladas irmãs de Betânia1?- Anela o gozo de uma sincera afeição"? Só pode encontrá-la no coração que manifestou o seu amor em gotas de sangue. Procura a proteção de um poder eficaz"? Nada mais tem a fazer senão olhar para Aquele que criou o mundo. Sente necessidade de uma sabedo­ria infalível para o guiara Entregue-se Aquele que é a sabedoria; "o qual por nossos pecados foi feito por Deus sabedoria". Em resumo, temos tudo em Cristo.
A mente divina e as afeições divinas encontraram um objetivo perfeito em "Jesus Cristo, homem"; e, seguramente, se existe na pessoa de Cristo o que pode satisfazer Deus perfeitamente, há também o que nos deveria satisfazer, e nos satisfará, na proporção em que, pela graça do Espírito Santo, andarmos em comunhão com Deus.

Cristo, o Homem Perfeito
O Senhor Jesus Cristo foi o único homem perfeito que jamais pisou esta terra. Era todo perfeito — perfeito em pensamento, palavras e ação. N'Ele todas as qualidades morais se encontravam em divina e, portanto, perfeita proporção. Nenhuma qualidade pré-ponderava. N'Ele entrelaçavam- se singularmente a majestade que amedrontava e a delicadeza que dava um perfeito à vontade na Sua presença. Os escribas e fariseus eram severamente censurados por Ele, enquanto que a samaritana e a mulher que era "pecadora" eram inexplicável e irresistivelmente atraídas para Ele. Nenhuma quali­dade deslocava outra, porque tudo estava em bela e airosa proporção. Isto pode verificar-se em todas as cenas da Sua perfeita vida. Podia dizer a respeito de cinco mil pessoas famintas: "Dai-lhes vós de comer"; e, depois de estarem satisfeitas podia acrescentar, "Recolhei os pedaços que sobejaram, para que nada se perca".
A benevolência e a economia são ambas perfeitas. Uma não interfere com a outra. Cada uma brilha na sua própria esfera. Não podia despedir a multidão faminta; tampouco podia permitir que um simples fragmento do que Deus criara fosse desperdiçado. Supria com mão-cheia e liberal as necessidades da família humana, e, quando isso fora feito, guardava cuidadosamente cada átomo deixado. A mesma mão que estava sempre aberta a toda a forma de necessidade humana estava firmemente fechada contra toda a prodigalidade. Nada havia de mesquinho nem tampouco de extra­vagante no caráter do Homem perfeito, o Homem do céu.
Que lição para nós! Quantas vezes acontece conosco que a benevolência degenera em injustificável prodigalidade! E, por outro lado, quantas vezes a nossa economia é manchada pela exibição de um espírito avaro!
Por vezes os nossos corações mesquinhos recusam abrir-se às necessidades que se nos apresentam; enquanto que noutras ocasiões dissipamos por frívola extravagância o que poderia satisfazer muitos dos nossos semelhantes necessitados. Oh! prezado leitor, estudemos atentamente o quadro divino que nos é apresentado na vida de "Jesus Cristo, homem". Quão confortante e edificante é para "o homem interior" estar ocupado com Aquele que foi perfeito em todos os Seus caminhos e que em tudo deve ter a "preeminência" !
Vede-O no jardim do Getsêmane. Ali, Ele ajoelha-Se no recôn­dito profundo de uma humildade que ninguém senão Ele podia mostrar; mas, todavia, adiante do bando do traidor mostra uma presença de espírito e majestade que nos faz retroceder e cair por terra. O seu comportamento diante de Deus é de prostração; mas perante os Seus juízes e acusadores de dignidade inflexível. Tudo é perfeito. O desapego, a humildade, a prostração e a dignidade são divinos.
Assim também quando contemplamos a combinação formosa das Suas relações divinas e humanas observa-se a mesma perfeição. Ele podia dizer, "Porque é que me procuráveis? Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai??-" E, ao mesmo tempo, podia descer a Nazaré e dar ali um exemplo de perfeita sujeição à autori­dade paternal (veja Lc 2:49-51). Podia dizer a Sua mãe: "Mulher, que tenho eu contigo?" E contudo ao passar pela agonia indizível da cruz podia confiar ternamente aquela mãe ao cuidado do discípulo amado. No primeiro caso, Ele separou-se no espírito de perfeito nazireu, deu expressão aos ternos sentimentos do perfeito coração humano. A devoção do Nazireu e a afeição do homem eram igualmente perfeitas. Não houve interferência nem num caso nem no outro. Cada uma brilhava com brilho límpido na sua própria esfera.
Agora, a sombra deste Homem perfeito passa perante nós na "flor de farinha" que formava a base da oferta de manjares. Não havia nela um grão mal moído. Nada desigual, nada desproporcio­ nal, nada revelava aspereza. Não importava qual fosse a pressão vinda do exterior, a superfície era sempre uniforme. O Senhor nunca foi perturbado por quaisquer circunstâncias. Nunca teve de retroceder um passo ou retirar uma palavra. Viesse o que viesse enfrentava sempre as circunstâncias com aquela uniformidade admiravelmente simbolizada na "flor de farinha".
Em todas estas coisas desnecessário é dizer que Ele está em flagrante contraste com os Seus mais honrados e consagrados servos. Por exemplo, Moisés, embora fosse "muito mais manso do que todos os homens que havia sobre a terra" (Nm 12:3) "falou imprudentemente com seus lábios" (SI 106:33). Em Pedro vemos um zelo e uma energia que, por vezes, eram excessivos; e, também noutras ocasiões, uma covardia que o levava a fugir do lugar de testemunho e vitupério. Fazia afirmações de uma devoção que, quando chegava a altura de agir, não se via. João, que respirava tanto da atmosfera da presença imediata de Cristo, manifestou, por vezes, um espírito sectário e intolerante. Em Paulo, o mais consagrado dos servos, descobrimos considerável desigualdade: dirigiu palavras ao sumo sacerdote que teve de retirar (At 23). Escreveu uma carta aos Coríntios, de que logo se arrependeu, para mais tarde não se arrepender (2 Co 7:8). Encontramos em todos qualquer falha, menos n'Aquele que "é cândido e totalmente desejável entre dez mil".
No estudo da oferta de manjares, para mais clareza e simplici­dade dos nossos pensamentos, convém considerar primeiro os materiais de que era composta; depois as diversas formas em que era apresentada; e, por último, as pessoas que participavam dela.

Os Ingredientes da Oferta de Manjares
a) A Flor de Farinha Amassada com Azeite
Quanto aos materiais, a "flor de farinha" pode ser considerada como a base da oferta; nela temos uma figura da humanidade de Cristo, na qual se encontram todas as perfeições. Nela se encontram também todas as virtudes prontas para ação eficiente, a seu tempo. O Espírito Santo deleita-se em mostrar a glória de Cristo, em O apresentar em toda a Sua excelência incomparável — em O apresen­tar diante de nós em contraste com tudo mais. Põe-no em contraste com Adão, até mesmo no seu melhor e mais elevado estado, como lemos: "O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu" (1 Co 15:47). O primeiro Adão, até mesmo no seu estado de inocência, era "da terra"; mas o segundo Homem era "o Senhor do céu".
O "azeite", na oferta de manjares, é um símbolo do Espírito Santo. Mas assim como o azeite é aplicado de um modo duplo, o Espírito Santo é apresentado num duplo aspecto, em relação com a encarnação do Filho. A flor de farinha era "amassada" com azeite; e sobre ela era deitado azeite (versículos 5,6). Tal era o tipo; e no Antítipo vemos o bendito Senhor Jesus Cristo, primeiro "concebi­do" e então "ungido" pelo Espírito Santo (compare Mt 1:18,23 com capítulo 3:16). Isto é divino! A exatidão é tão clara que provoca a admiração da alma. O mesmo Espírito que dita os ingredientes do tipo dá-nos os fatos ocorridos com o Antítipo. O mesmo que referiu com assombrosa precisão as figuras e sombras do Livro de Levítico deu-nos também o seu glorioso objetivo nas páginas do evangelho. O mesmo Espírito sopra através das páginas do Velho e do Novo Testamento e permite-nos ver como um corresponde exatamente ao outro.
A concepção da humanidade de Cristo, pelo Espírito Santo, no ventre da virgem descobre um dos mais profundos mistérios que pode prender a atenção da mente renovada. E plenamente revelado no Evangelho de Lucas; e isto é inteiramente característico, visto que, através de todo esse evangelho, parece ser objetivo especial do Espírito Santo revelar, na Sua maneira terna e divina, "o Homem Cristo Jesus". Em Mateus temos "O Filho de Abraão" — "Filho de Davi". Em Marcos temos o Servo Divino — o Obreiro Celestial. Em João temos "o Filho de Deus"—o Verbo Eterno — a Vida, Luz, por Quem todas as coisas foram feitas. Porém, o grande tema do Espírito Santo no Evangelho de Lucas é "o Filho do homem".
Quando o anjo Gabriel anunciou a Maria a honra que lhe ia ser conferida em relação com a grande obra da encarnação, ela, não com espírito de cepticismo, mas de honesta ignorância, perguntou: "Como se fará isto, visto que não conheço varãoí" Claramente, imaginava que o nascimento desta gloriosa Pessoa que estava prestes a aparecer devia ser segundo os princípios normais da geração; e este seu pensamento torna-se, na infinita bondade de Deus, a ocasião de derramar luz sobre a verdade fundamental da encarnação. A resposta do anjo à pergunta da virgem é muito interessante e merece ser considerada a fundo. "E respondendo o anjo disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; pelo que também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus" (Lc 1:35).
Desta magnífica passagem aprendemos que o corpo humano que o Filho eterno de Deus tomou foi formado pela "virtude do Altíssimo". Um "corpo me preparaste" (compare-se SI 40:6 com Hb 10:5). Foi um verdadeiro corpo humano—verdadeiramente "carne e sangue". Não há aqui fundamento possível para as teorias inúteis e inconsistentes do agnosticismo ou misticismo; nenhuma justificação para as frias abstrações do primeiro ou a fantasia obscura do último. Tudo é profunda, sólida e divina realidade. O que os nossos corações neces­sitam é precisamente o que Deus nos deu. A primitiva promessa havia declarado que "a semente da mulher havia de ferir a cabeça da serpente", e ninguém, a não ser um verdadeiro homem, podia cumprir esta predição—alguém cuja natureza humana fosse tão real quanto era pura e incorruptível. "Eis que em teu ventre conceberás", disse o mensageiro angélico, "e darás à luz filho ('). E, então, para que não houvesse lugar para qualquer erro quanto ao modo desta concep­ção, ele acrescenta palavras que provam indubitavelmente que "a carne e o sangue" de que o Filho eterno "participou" , ao mesmo tempo que era absolutamente real, era absolutamente incapaz de receber, reter ou comunicar uma simples mancha. A humanidade do Senhor Jesus era, enfaticamente, "O Santo".
E, visto que era inteiramente sem mancha, não havia nela o princípio mortalidade. Não podemos pensar na mortalidade sem a relacionar com o pecado; e a humanidade de Cristo não tinha nada a ver com o pecado, quer pessoal quer relativamente. O pecado foi-Lhe imputado na cruz, onde "ele foi feito pecado por nós". Mas a oferta de manjares não é uma figura de Cristo tomando sobre Si o pecado. Prefigura-O na Sua vida perfeita aqui na terra — uma vida em que sofreu, sem dúvida, mas não como Aquele que leva sobre si o pecado, não como substituto nem como sofrendo às mãos de Deus. Convém distinguir isto claramente. Nem no holocausto nem na oferta de manjares se prefigura Cristo levando sobre Si o pecado. Nesta vêmo-Lo vivendo, e naquele vêmo-Lo morrendo na cruz; mas em nenhuma destas ofertas existe a questão de imputar o pecado nem de suportar a ira de Deus por causa do pecado. Em resumo, apresentar Cristo como o substituto do pecador em qualquer lugar a não ser na cruz é privar a Sua vida de toda a sua beleza divina e excelência, e deslocar inteiramente a cruz. Além disso, isto envol­veria em confusão irremediável as figuras do livro de Levítico.

____________ ___
(1) "Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei" (Gl 4:4). Esta passagem é muito importante, visto que apresenta o bendito Senhor como Filho de Deus e Filho do homem. "Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher". Que precioso testemunho!

Quero advertir o leitor que nunca poderá ser escrupuloso de­mais em referência à verdade essencial da Pessoa do Senhor Jesus Cristo e Suas relações. Tudo que não tiver esta verdade por base não pode receber a sanção de Deus. A Pessoa de Cristo é o centro vivo e divino ao redor do qual o Espírito Santo exerce toda a Sua atividade. Deixar escapar a verdade a este respeito e, à semelhança de um barco que parte as amarras e é levado sem leme ou bússola sobre a turbulenta imensidade líquida, vós correreis o perigo iminente de vos despedaçardes contra as rochas do arianismo, da infidelidade ou do ateísmo. Duvidai da eterna Filiação de Cristo; duvidai da Sua divindade ou da Sua humanidade incontaminada, e tereis aberto as comportas à corrente do erro mortal. Ninguém julgue, nem por um momento, que isto é apenas um assunto para ser discutido entre teólogos — uma questão curiosa, um mistério abstrato ou um ponto sobre o qual podemos legalmente discordar. Não; é uma verdade essencial e basilar, para ser retida na energia do Espírito Santo e mantida a todo o custo — na verdade, para ser confessada em todas as circunstâncias, sejam quais forem as conseqüências.
O que nós precisamos é receber simplesmente em nossos cora­ções, pela graça do Espírito Santo, a revelação que o Pai faz do Filho, e, então, as nossas almas serão eficazmente preservadas das ciladas do inimigo, seja qual for a forma que elas tomarem. O inimigo pode cobrir plausivelmente as armadilhas do arianismo ou socinianismo com a erva e as folhas de um atrativo e plausível sistema de interpretação; mas o coração piedoso descobre imediatamente o que este sistema pretende fazer de Aquele bendito Senhor a quem tudo deve e onde ele pretende colocá-lo, e, não encontra dificuldade em o remeter ao lugar de onde veio. Podemos muito bem dispensar as teorias humanas; mas não podemos prescindir de Cristo — o Cristo de Deus; o Cristo das afeições de Deus; o Cristo dos desígnios de Deus; o Cristo da Palavra de Deus.
O Senhor Jesus Cristo, o Filho eterno de Deus, uma Pessoa distinta da Trindade gloriosa, Deus manifestado em carne, Deus sobre todas as coisas, bendito eternamente, tomou um corpo que era inerente e divinamente puro, santo e sem possibilidade de contrair mancha—absolutamente isento de toda a semente ou princípio de pecado e mortalidade. A humanidade de Cristo era tal que Ele podia a todo o momento, tanto quanto Lhe dizia pessoalmente respeito, voltar para o céu, de onde tinha vindo, e ao qual pertencia. Dizendo isto, não me refiro aos desígnios eternos do amor redentor ou do amor inalterável do coração de Jesus—o Seu amor por Deus, o Seu amor pelos eleitos de Deus ou da obra que era necessária para ratificar o concerto eterno de Deus com a semente de Abraão e toda a criação. As próprias palavras de Cristo ensinam-nos que "convinha que padecesse e ressuscitasse ao terceiro dia" (L c 24:46). Era necessário que sofresse para perfeita manifestação e pleno cumpri­mento do grande mistério da redenção. Era Seu clemente propósito "trazer muitos filhos à glória". Não queria "ficar só", e, portanto, Ele, como "o grão de trigo", devia "cair na terra e morrer". Quanto melhor compreendermos a verdade da Sua Pessoa, tanto melhor compreenderemos a graça da Sua obra.
Quando o apóstolo fala de Cristo como havendo sido consagrado pelas aflições considera-O como "o príncipe da nossa salvação" (Hb 2:10); e não como o Filho eterno, que, pelo que diz respeito à Sua própria pessoa e natureza, era divinamente perfeito sem que fosse possível acrescentar alguma coisa ao que Ele era. Assim, também, quando o próprio Senhor diz: "Eis que eu expulso demô­nios, e efetuo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia sou consumado" (Lc 13:22) refere-Se ao fato de ser consumado no poder da ressur­reição como o Consumador de toda a obra da redenção. Tanto quanto Lhe dizia respeito, Ele podia dizer, até mesmo ao sair do Jardim do Getsêmane: "Ou pensas tu que eu não poderia, agora, orar a meu Pai e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos? Como, pois se cumpririam as Escrituras, que dizem que assim convém que aconteça"? (Mt 26:53,54).
É bom que a alma seja esclarecida acerca disto — é bom ter uma compreensão divina da harmonia que existe entre aquelas passa­gens das Escrituras que apresentam Cristo na dignidade essencial da Sua pessoa e pureza da Sua natureza e aquelas que O apresentam em relação com o Seu povo e cumprindo a grande obra da redenção. Por vezes encontramos estes dois aspectos ligados na mesma passa­gem, como em Hebreus 5:8 a 9, "Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu. E, sendo ele consumado, veio a ser a causa de eterna salvação para todos os que lhe obedecem". Devemos contudo lembrar que nenhuma destas relações em que Cristo entrou voluntariamente, quer como expressão do amor divino para com o mundo perdido, quer como o Servo dos desígnios divinos, podia de modo algum interferir com a pureza essencial, a excelência e a glória da Sua Pessoa. "O Espírito Santo desceu sobre a virgem", e a virtude do Altíssimo "cobriu-a com a Sua sombra; pelo que também o santo que dela nasceu foi chamado Filho de Deus". Magnífica revelação do mistério da humanidade pura e perfeita de Cristo, o grande Antítipo da "flor de farinha amassada com azeite"!
Deixai-me observar que entre a humanidade como se vê no Senhor Jesus Cristo e a humanidade em nós não pode haver união. Aquilo que é puro nunca pode ligar-se àquilo que é impuro. Aquilo que é incorruptível nunca pode unir-se ao que é corruptível. O espiritual e o carnal — o celestial e o terrestre — nunca podem combinar-se. Portanto, segue-se que a encarnação não foi, como alguns têm tentado ensinar-nos, Cristo tomando a nossa natureza decaída em união consigo Mesmo. Se tivesse feito isto, a morte da cruz não teria sido necessária. Ele não necessitava, nesse caso, "angustiar-se" até que se cumprisse o batismo—não havia neces­sidade de o grão de trigo "cair na terra e morrer". Isto é um ponto de grande importância.
A mente espiritual deve ponderar atentamente este fato. Cristo não podia, de modo algum, tomar a natureza humana pecaminosa em união consigo. Ouvi o que o anjo disse a José no primeiro capítulo do evangelho de Mateus. "José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o aue nela está gerado é do Espírito Santo". Veja-se como a sensibilidade natural de José, assim como a piedosa ignorância de Maria, dão ocasião a uma revelação mais completa do santo mistério da humanidade de Cristo e como contribuem também para proteger essa humanidade contra todos os ataques blasfemos do inimigo!
Como é então que os crentes são unidos a Cristo1? É na encarnação ou na ressurreição? Na ressurreição certamente. Como é que isto se provai "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer fica ele só" (Jo 12:24). Deste lado da morte não podia haver união entre Cristo e o Seu povo. É no poder de uma nova vida que os crentes são unidos a Cristo. Eles estavam mortos em pecado, e Ele, em perfeita graça, desceu e, apesar de puro e imaculado em Si próprio, "foi feito pecado"—"morreu para o pecado"—, tirou-o, ressuscitou triunfante sobre ele e na ressurreição tornou-Se a Cabeça de uma nova raça. Adão era a cabeça da velha criação, que caiu com ele. Cristo, pela Sua morte, pôs-se a Si próprio sob todo o peso da condição do Seu povo, e havendo satisfeito tudo que era contra eles, ressuscitou vitorioso sobre tudo e levou-os consigo para a nova criação, da qual Ele é o centro e Chefe glorioso. Por isso lemos: "O que se ajunta com o Senhor é um mesmo espírito" (1 Co 6:17).
"Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos) e nos ressuscitou juntamente com ele, e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus" (Ef 2:4-6). "Porque somos membros do seu corpo", da Sua carne e dos seus ossos (Ef 5:30). "E, quando vós estáveis mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todas as ofensas" (Cl 2:13).
Poderíamos multiplicar as passagens, porém as que reproduzi­mos são amplamente suficientes para provar que não foi na encarnação mas na morte que Cristo tomou uma posição na qual o Seu povo pôde ser "vivificado com ele". Isto parece insignificante ao leitora Examine-o à luz da Escritura. Pese todas as conseqüências. Considere-o em relação com a pessoa de Cristo, com a Sua vida e com a Sua morte, com a nossa condição, por natureza, na velha criação, e o nosso lugar, por misericórdia, na nova. Considere-o assim, e estou persuadido que não voltará a considerá-lo como um assunto de pouca importância. De uma coisa, pelo menos, pode o leitor estar certo, que o autor destas páginas não escreveria uma simples linha para provar este ponto, se não o considerasse pleno dos mais importantes resultados. O conjunto da revelação divina está unido de tal maneira e tão bem ajustado pela mão do Espírito Santo — é tão consistente em todas as suas partes — que se uma verdade é alterada todo o seu arco é prejudicado. Esta consideração deveria bastar para produzir na mente de todo o cristão uma santa atitude de precaução, a fim de evitar que, por qualquer golpe rude, ele possa prejudicar a beleza da superestrutura. Cada pedra deve ser deixada no seu lugar divinamente marcado; e a verdade acerca da Pessoa de Cristo é incontestavelmente a pedra principal da abóbada.

b) A Flor de Farinha sobre a qual "deitarás azeite"
Havendo procurado assim descrever a verdade simbolizada pela "flor de farinha amassada com azeite", podemos considerar outro ponto de grande interesse na expressão "e sobre ela deitarás azeite". Nisto temos uma figura da unção do Senhor Jesus Cristo pelo Espírito Santo. O corpo do Senhor Jesus não foi apenas preparado misteriosamente pelo Espírito Santo, como foi ungido, como vaso santo e puro, para o serviço pelo mesmo poder. "E aconteceu que, como todo o povo se batizava, sendo batizado também Jesus, orando ele, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele, em forma corpórea, como uma pomba; e ouviu-se uma voz do céu que dizia: Tu és o meu Filho amado; em ti me tenho comprazido" (1x2:21-22).
O fato de o Senhor Jesus ter sido ungido pelo Espírito Santo antes da Sua entrada no ministério público é, praticamente, da máxima importância para todo aquele que deseja realmente ser verdadeiro e eficiente servo de Deus. Embora concebido quanto à Sua huma­nidade pelo Espírito Santo; posto que na Sua Própria Pessoa fosse "Deus manifestado em carne"; se bem que a plenitude da Divindade habitasse corporalmente n'Ele; contudo, é bom notar que, quando se manifesta como homem, para fazer a vontade de Deus na terra, qualquer que fosse essa vontade, quer pregando o evangelho, ou ensinando nas sinagogas, quer curando os enfermos ou purificando os leprosos, quer expulsando os demônios, alimentando os famin­tos ou ressuscitando os mortos, fez tudo pelo Espírito Santo. O vaso santo e celestial em que aprouve ao Deus Filho aparecer no mundo foi formado, ungido e dirigido pelo Espírito Santo.
Que profunda e santa lição para nós! Uma lição tão necessária como salutar! Quão propensos somos a correr sem sermos enviados! Quão propensos a atuar na energia da carne! Quanto daquilo que se parece com ministério não é somente atividade inquieta e profana de uma natureza que nunca foi medida nem julgada na presença divina! Na realidade, nós precisamos de contemplar aten­tamente a nossa divina "oferta de manjares" para compreendermos melhor o significado da "flor de farinha amassada com azeite". Precisamos de meditar profundamente sobre o próprio Cristo, que, apesar de possuir, na Sua própria pessoa, poder divino, contudo, fez toda a Sua obra, operou todos os Seus milagres, e, finalmente, "ofereceu-se a si mesmo imaculado a Deus pelo Espírito eterno" (Hb 9:14). Ele podia dizer "eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus" (Mt 12:28).
Nada tem qualquer valor senão aquilo que é realizado pelo poder do Espírito Santo. Um homem pode escrever; porém se a sua pena não for guiada e usada pelo Espírito Santo, as suas linhas não produzirão resultados permanentes. Um homem pode falar; mas se os lábios não forem ungidos pelo Espírito Santo, as suas palavras não criarão raízes. Isto merece a nossa solene consideração, e, se for devidamente ponderado, levar-nos-á a muita vigilância sobre nós próprios e a uma dependência fervorosa do Espírito Santo. O que precisamos é despojarmo-nos inteiramente do ego, a fim de haver lugar para o Espírito agir por nosso intermédio. E impossível que um homem cheio de si mesmo possa ser o vaso do Espírito Santo. Um tal homem deve primeiro despojar-se de si mesmo, e então o Espírito Santo pode usá-lo. Quando contemplamos a Pessoa e o ministério do Senhor Jesus, vemos como em todas as cenas e circunstâncias, atua pelo poder direto do Espírito Santo. Havendo tomado o Seu lugar, como homem, no mundo, mostrou que o homem deve viver não somente da Palavra mas atuar pelo Espírito de Deus. Ainda que, como homem, a Sua vontade era perfeita — os Seus pensamentos, as Suas palavras e as Suas obras eram em tudo perfeitas —, contudo não atuava senão pela direta autoridade da Palavra e pelo poder do Espírito Santo. Oh! se nisto, como em tudo mais, nós pudéssemos seguir mais de perto e fielmente nas Suas pisadas! Então o nosso ministério seria verdadeiramente eficaz, o nosso testemunho mais fecundo e toda a nossa vida para glória de Deus.

c) O Incenso
Outro ingrediente da oferta de manjares, que requer a nossa atenção, é "o incenso". Como tivemos ocasião de verificar, a oferta de manjares era à base de "flor de farinha". O "azeite" e "o incenso" eram os dois principais ingredientes acrescentados; e, na realidade, a relação entre estes dois é muito instrutiva. O "azeite" simboliza o poder do ministério de Cristo; "o incenso" simboliza o seu objetivo. O primeiro ensina-nos que Ele fez tudo pelo Espírito de Deus; o último que fez tudo para glória de Deus.
O incenso representa aquilo que na vida de Cristo era exclusi­vamente para Deus. Isto é evidente pelo segundo versículo: "E a trará (a oferta de manjares) aos filhos de Arão, os sacerdotes, um dos quais tomará dela um punhado da flor de farinha e do seu azeite com todo o seu incenso; e o sacerdote queimará este memorial sobre o altar; oferta queimada é; de cheiro suave ao Senhor". Assim era a verda­deira oferta de manjares — o Homem Cristo Jesus. Em Sua vida bendita havia o que era exclusivamente para Deus. Cada pensamen­to, cada palavra, cada olhar, cada ato Seu exalava um perfume que subia diretamente para Deus. E assim como o símbolo era "o fogo do altar" que fazia sair o cheiro suave do incenso, assim no Antítipo quanto mais "provado" era, em todas as cenas e circunstâncias da Sua bendita vida, tanto mais manifesto se tornava que, na Sua humanidade, não havia nada que não pudesse subir, como cheiro suave, ao trono de Deus. Se no holocausto vemos Cristo "oferecendo- se a si mesmo imaculado a Deus", na oferta de manjares vêmo-Lo apresentar a Deus toda a excelência intrínseca da Sua natureza humana e perfeita atividade. Um homem perfeito, vazio de si, obediente, na terra, fazendo a vontade de Deus, agindo pela auto­ridade da Palavra e mediante o poder do Espírito, exalava um perfume suave que só podia ter aceitação divina. O fato de todo "o incenso" ser consumido sobre o altar revela a sua importância da maneira mais simples.

d) O Sal
Agora só nos falta considerar um ingrediente que fazia parte da oferta de manjares, a saber, "o sal". "E toda a oferta dos teus manjares salgarás com sal; e não deixarás faltar à tua oferta de manjares o sal do concerto do teu Deus; em toda a tua oferta oferecerás sal". A expressão "o sal do concerto" revela o caráter permanente desse concerto. Deus Mesmo tem ordenado assim o seu emprego em todas as coisas para que nunca haja alteração —nenhuma influên­cia poderá corrompê-lo. Sob o ponto de vista espiritual e prático, é impossível dar demasiado apreço a um tal ingrediente. "A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal" (Cl 4:6). Em todas as conversas, o Homem perfeito mostrava sempre o poder deste princípio. As Suas palavras não eram simplesmente palavras de graça, mas palavras de penetrante poder—palavras divinamente adaptadas para preservar de toda a mancha e influência corrupta. Nunca pronunciou uma palavra que não fosse perfumada com "incenso" e "temperada com sal". O primeiro era de todo agradável a Deus; o último, o mais proveitoso para o homem.
Às vezes, infelizmente, o coração corrompido do homem e o seu gosto viciado não podiam tolerar a acidez da oferta de manjares salgada por determinação divina. Observemos, por exemplo, a cena na sinagoga de Nazaré (Lc 4:16-29). O povo podia dar-lhe testemu­nho e "todos... se maravilham das palavras de graça que saíam da sua boca"; mas logo que passou a temperar essas palavras com sal, que tão necessário era a fim de os preservar da influência corruptível do seu orgulho nacional, eles de boa vontade O teriam precipitado do cume do monte em que a sua cidade estava edificada.
Assim também em Lucas 14, logo que as Suas palavras de "graça" atraíram "grandes multidões", Ele deitou-lhes imediatamente o "sal" ao anunciar em palavras de santa fidelidade os resultados seguros de O seguirem. "Vinde, que já tudo está preparado". Aqui estava a "graça". Mas logo em seguida diz: Qualquer de vós que não renunciar a tudo quanto tem não poder ser meu discípulo. Aqui estava o "sal". A graça é atrativa; mas "o sal é bom". Um discurso agradável pode ser popular; mas um discurso temperado com sal nunca o será. A multidão pode, em certas ocasiões e sob determina­das circunstâncias, seguir por um pouco de tempo o puro evangelho da graça de Deus; mas logo que o "sal" de uma aplicação fervorosa e fiel é introduzido, o auditório é reduzido ao número daqueles que foram trazidos sob o poder da Palavra.

Os Ingredientes Excluídos da Oferta de Manjares
a) O Fermento
Havendo assim considerado os ingredientes que compunham a oferta de manjares, referiremos agora os que eram excluídos dela.
Destes, o primeiro era "o fermento". "Nenhuma oferta de manjares, que oferecerdes ao Senhor, se fará com fermento". Por todo o volume inspirado, sem uma única exceção, o fermento é o símbolo do mal. Em capítulo 23 de Levítico, que examinaremos na devida altura, vemos que o fermento era permitido nos dois pães que eram oferecidos no dia de Pentecostes (versículo 17); porém, da oferta de manjares, o fermento era cuidadosamente excluído. Não devia haver nada que azedasse, nada que fizesse levantar a massa, nada expressivo do mal naquilo que simbolizava "o Homem Cristo Jesus". N'Ele não podia haver nada com gosto ao azedume da natureza, nada turvo, nada susceptível de fazer inchar. Tudo era puro, sólido e genuíno. A Sua palavra podia, por vezes, ferir até ao vivo; mas nunca era áspera. O Seu estilo nunca se elevou acima das ocasiões. O Seu comportamento mostrou sempre a profunda rea­lidade de quem andava na presença imediata de Deus.
Nós que professamos o nome de Jesus, sabemos muito bem como, infelizmente, o fermento se mostra em todas as suas propriedades e efeitos. Só houve uma gabela pura de fruto humano — uma única oferta de manjares perfeitamente sem levedura; e, bendito seja Deus, essa é a nossa — para nos alimentarmos dela no santuário da presença divina, em comunhão com Deus. Nenhum exercício espiritual pode realmente edificar melhor e dar maior refrigério à mente renovada do que firmarmo-nos sobre a perfeição incontaminável da humani­dade de Cristo — para contemplar a vida e o mistério d'Aquele que foi absoluta e essencialmente sem levedura. Em toda a origem dos Seus pensamentos, afeições, desejos e imaginação não havia a míni­ma partícula de fermento. Ele foi o Homem perfeito, sem pecado e imaculado. E quanto mais, no poder do Espírito, aprofundarmos tudo isto, tanto mais profunda será a nossa experiência da graça que levou este perfeito Senhor a tomar sobre Si todas as conseqüências dos pecados do Seu povo, como fez quando foi pendurado na cruz. Porém, este pensamento pertence inteiramente ao sacrifício de nosso ben­dito Senhor, simbolizado na expiação do pecado. Na oferta de man­jares, o pecado não está em questão. Não é uma figura da expiação do pecado por um substituto, mas de um Homem real, perfeito, imaculado, concebido e ungido pelo Espírito Santo, possuindo uma natureza sem fermento e vivendo uma vida isenta de levedura no mundo; exalando sempre perante Deus a fragrância da Sua excelên­cia pessoal e mantendo entre os homens um comportamento caracterizado pela "graça temperada com sal".

b) O Mel
Porém, havia outro ingrediente tão claramente excluído da oferta de manjares quanto o "fermento", e este era o "mel". "Porque de nenhum fermento, nem de mel algum oferecereis oferta queimada ao Senhor" (versículo 11). Portanto, assim como o "fermento" é a expressão daquilo que é positiva e manifestamente mau na natureza, podemos considerar o "mel" como o símbolo expressivo do que é aparentemente doce e atrativo. Ambos são proibidos por Deus — ambos eram cuidadosamente excluídos da oferta de man­jares —, ambos impróprios para o altar. Os homens podem aventu­rar-se, como Saul, a distinguir entre o que é "vil e desprezível" (1 Sm 15:9) e o que não é: porém o juízo de Deus conta o polido Agaque com o mais vil dos filhos de Amaleque. Não há dúvida que existem boas qualidades morais no homem, que devem ser consi­deradas pelo seu valor. "Achaste mel come o que te basta". Mas recorde-se que não era admitido na oferta de manjares nem no seu Antítipo. Havia a plenitude do Espírito Santo; havia o fragrante odor do incenso; havia a virtude preservativa do "sal do concerto". Todas estas coisas acompanhavam a "flor de farinha" na Pessoa da verdadeira "oferta de manjares"; mas nenhum mel.
Que lição se encontra aqui para os nossos corações! Sim, que volume de sã instrução! O bendito Senhor Jesus sabia como dar à natureza e às suas relações o lugar próprio. Sabia a quantidade de "mel" que era conveniente; podia dizer a Sua mãe: "Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai" E todavia podia dizer também ao discípulo amado: "Eis aí tua mãe". Por outras palavras, nunca permitiu que as pretensões da natureza interferissem com a apresentação a Deus de todas as energias da perfeita humanidade de Cristo. Maria e outros também podiam ter pensado que as suas relações humanas com o bendito Senhor lhes dava algum direito ou influência peculiar com base em motivos puramente naturais.
"Chegaram, então, seus irmãos e sua mãe; e, estando de fora, mandaram-no chamar. E a multidão estava assentada ao redor dele, e disseram-lhe: Eis que tua mãe e teus irmãos (segundo a carne) te procuram e estão lá fora" (Mc 3:31-32).
Qual foi a resposta de Aquele que a oferta de manjares simboli­zava em Sua perfeição? Abandonou Ele imediatamente a Sua missão a fim de atender a chamada da natureza? De modo nenhum. Se o tivesse feito, teria sido a mesma coisa que misturar "mel" com a oferta de manjares, o que não podia ser permitido. O mel foi fielmente excluído nesta ocasião, assim como em todas as ocasiões em que os direitos de Deus deviam ser atendidos, e, em seu lugar, o poder do Espírito, o odor do "incenso" e as virtudes do "sal" foram ditosamente patenteados. "E ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, olhando em redor para os que estavam assentados junto dele disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Porquanto qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe" (') (Mc 3:33-35).
Há poucas coisas que o servo de Cristo encontra mais difíceis do que harmonizar, com precisão espiritual, as pretensões das relações naturais, de forma a não as deixar interferir com os direitos do Mestre. No caso do nosso bendito Senhor, como bem sabemos, este ajusta­mento era divino. No nosso caso, acontece freqüentemente que os deveres divinamente reconhecidos são abertamente negligenciados para dar lugar àquilo que imaginamos ser o serviço de Cristo. A doutrina de Deus é constantemente sacrificada à obra aparente do evangelho. Porquanto é bom lembrar que a verdadeira dedicação parte sempre de um ponto em volta do qual estão inteiramente asseguradas todas as reivindicações de Deus. Se eu tenho uma colocação que requer os meus serviços desde as dez às dezesseis horas todos os dias, não tenho o direito de sair para fazer visitas ou pregar durante aquelas horas. Se estou estabelecido, sou forçado a manter a integridade desse negócio de uma maneira cristã. Não tenho o direito de correr para lá e para cá para pregar, enquanto o meu negócio fica abandonado e em desordem, trazendo vergonha sobre a santa doutrina de Deus. Um homem pode dizer: "eu sinto-me chamado para pregar o evangelho e acho que o meu emprego ou negócio é um embaraço". Bem, se és divinamente chamado e apto para a obra do evangelho e não podes conciliar as duas coisas, então renuncia à tua colocação ou liquida o teu negócio de uma maneira cristã e parte em nome do Senhor. Mas, claro, enquanto eu continuar no meu emprego ou mantiver o meu negócio, o meu trabalho no evangelho deve partir de um ponto no qual os meus deveres nessa ocupação ou nesse negócio são inteiramente cum­pridos. Isto é consagração. Tudo o mais é confusão, por mais bem intencionado. Bendito seja Deus, temos um exemplo perfeito perante nós na vida do Senhor Jesus e ampla direção para o novo homem, na Palavra de Deus; de forma que não há razão para cometermos erros nas diversas responsabilidades que formos chamados, na providência de Deus, a desempenhar ou quanto aos vários deveres que o governo moral de Deus tem estabelecido em relação com tais responsabilidades.

____________ ________
(1) Quão importante é vermos nesta magnífica passagem que fazer a vontade de Deus põe a alma num parentesco com Cristo do qual os Seus irmãos segundo a carne nada sabiam, pois não se baseia em laços naturais. Era tão verdadeiro a respeito daqueles irmãos como a respeito de outra qualquer pessoa, que "aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus". Maria não podia ter sido salva pelo simples fato de ser a mãe de Jesus. Ela precisa ter fé pessoal em Cristo como qualquer outro membro da família decaída de Adão. Precisa de passar por meio do novo nascimento da velha criação para a nova. Foi por ter entesourado as palavras de Cristo em seu coração que esta bem-aventurada mulher foi salva. Não há dúvida que ela foi especialmente agraciada por ter sido escolhida como um vaso para tão santa missão, mas, como qualquer pecador, ela precisava de "alegrar-se em Deus, seu Salvador". Ela permanece no mesmo plano, está lavada no mesmo sangue, vestida com as mesmas vestes de justiça e entoará o mesmo cântico como todos os remidos de Deus.
Este simples fato dará força adicional e clareza a um ponto que foi já frisado, a saber: que a encarnação não significou Cristo tomar a nossa natureza em união consigo. Esta verdade deve ser escrupulosamente ponderada. E inteiramente apresentada em 2 Coríntios 5: "Porque o amor de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se um morreu, logo, todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. Assim que, daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne, e, ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo, agora; já não o conhecemos desse modo. Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo" (versículos 14-17).


A Oferta de Manjares em suas diversas Formas
O segundo ponto do nosso assunto é a forma como era prepa­rada a oferta de manjares. Isto era feito, como lemos, pela ação do fogo. Era "cozida no forno", "cozida na caçoula" ou frita numa "sertã". O processo de cozedura sugere a idéia de sofrimento. Mas visto que a oferta de manjares é chamada de "cheiro suave" — um termo que nunca é aplicado à expiação do pecado ou expiação da culpa — é evidente que há qualquer relação com o sofrimento do pecado — não sugere o sofrimento sob a ira de Deus devido ao pecado, nem o sofrimento às mãos da Justiça infinita com subs­tituto do pecador. As duas idéias de "cheiro suave" e sofrimento pelo pecado são inteiramente incompatíveis, segundo a ordem da dispensação levítica. Se introduzíssemos a idéia do sofrimento pelo pecado na oferta de manjares, destruiríamos totalmente o seu símbolo.
Ao contemplarmos a vida do Senhor Jesus, que, como já frisa­mos, é o principal assunto prefigurado na oferta de manjares, podemos notar três espécies distintas de sofrimento, a saber: sofri­mento por amor da justiça, sofrimento em virtude da simpatia, e o sofrimento por antecipação.

a) Sofrimento por Amor da Justiça
Como Servo justo de Deus, Ele sofreu no meio de uma cena em que tudo Lhe era adverso; contudo isto era justamente o oposto do sofrimento pelo pecado. É da máxima importância distinguir entre estas duas espécies de sofrimento. Confundi-las conduzir-nos- ia a erros graves. Sofrer com um justo e manter uma atitude firme entre os homens a favor de Deus é uma coisa; sofrer em lugar do homem sob a mão de Deus é outra muito diferente. O Senhor Jesus sofreu por amor da justiça, durante a Sua vida. Sofreu pelo pecado, na Sua morte. Durante a Sua vida os homens e Satanás sempre se Lhe opuseram; e até mesmo na cruz empregaram todo o poder de que dispunham; mas depois de ter sido feito tudo que podiam fazer— depois de haverem chegado, no seu ódio mortal, ao limite da oposição humana e diabólica — restava ainda uma região afastada de sombras impenetráveis e horror que tinha de ser percorrida por Aquele que levava sobre Si o pecado, no cumprimento da Sua obra. Durante a Sua vida, Ele sempre andou na luz límpida do semblante divino! Porém, sobre a cruz de maldição a sombra negra do pecado interveio e ocultou essa luz e provocou esse brado misterioso:
"Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste? " Foi um momen­to absolutamente único nos anais da eternidade. De vez em quando, durante a vida de Cristo na terra, o céu abriu-se para dar expressão à complacência divina n'Ele; mas na cruz Deus desamparou-O, porque Ele estava oferecendo a Sua alma em sacrifício pelo pecado. Se Cristo tivesse carregado com o pecado em toda a Sua vida, então qual seria a diferença entre a cruz e qualquer outro período1? Por que razão não foi Ele desamparado por Deus durante toda a Sua vida? Qual foi a diferença entre Cristo na cruz e Cristo no monte da transfiguração? Foi desamparado de Deus nesse monte1?- Estaria Ele ali carregando com o pecado"? Estas interrogações são muito sim­ples, mas que dêem a resposta aqueles que alimentam a idéia de uma vida com o peso do pecado.
O fato simples é este, não houve nada quer na humanidade de Cristo, quer na natureza das Suas relações, que pudesse, de modo algum, relacioná-Lo com o pecado ou a ira ou a morte. Ele "foi feito pecado" na cruz; e ali suportou a ira de Deus e deu a Sua vida, como perfeita expiação pelo pecado. Porém, nada disto encontra lugar na oferta de manjares. Na realidade, temos o processo de cozedura — a ação do fogo —; mas isto não é a ira de Deus. A oferta de manjares não era uma oferta pelo pecado, mas uma oferta de "cheiro suave". Assim, a sua importância está definitivamente estabelecida; e, além disso, a sua inteligente interpretação deve sempre preservar, com santo zelo, a verdade preciosa da humanidade imaculada de Cristo e verdadeira natureza das Suas relações. Dizer que Ele, por necessi­dade do Seu nascimento, teve de carregar com o pecado, ou colocá-Lo, por esse motivo, debaixo da maldição da lei e da ira de Deus, é contradizer toda a verdade de Deus respeitante à encarnação — verdade anunciada pelo anjo e repetida diversas vezes pelo apóstolo inspirado. Além disso, tal afirmação destrói todo o caráter e objetivo da vida de Cristo e rouba à cruz a sua glória característica. Diminui a significação do pecado e da expiação. Numa palavra, remove a pedra principal do arco da revelação e põe tudo em irremediável ruína e confusão em redor de nós.

b) Sofrimento em Virtude da Simpatia
O Senhor Jesus também sofreu em virtude da simpatia — da compaixão —; e este gênero de sofrimento nos faz penetrar nos segredos profundos do Seu terno coração. A dor humana e a miséria sempre impressionaram esse coração de amor. Era impossível que esse perfeito coração humano não sentisse com a sua sensibilidade divina as misérias que o pecado havia transmitido à família huma­na. Embora livre, pessoalmente, tanto da causa como do efeito— pertencendo, embora ao céu, e vivendo uma perfeita vida celestial na terra, contudo, desceu no poder de uma imensa compaixão aos mais profundos recessos da dor humana. Assim, Ele sentiu a dor mais vivamente do que aqueles que eram vítimas dela, porquanto a Sua humanidade era perfeita. E, além disso, pôde contemplar tanto a dor como a sua causa, segundo a sua própria medida e caráter perante Deus. Sentia como ninguém jamais pôde sentir. Os Seus sentimentos — as Suas afeições, a Sua sensibilidade e simpatia— toda a Sua constituição moral e mental eram perfeitos; e, por isso, ninguém pode dizer quanto sofreu ao passar por um mundo como este. Viu lutar a família humana sob o peso grave da culpa e miséria; observou como toda a criação gemia debaixo do jugo; o clamor dos cativos chegava aos Seus ouvidos; as lágrimas das viúvas saltavam aos Seus olhos; as privações e a pobreza comoviam o Seu coração sensível; perante a doença e a morte "moveu-se muito em espírito; os Seus sofrimentos em virtude de simpatia excediam todo o entendimento humano.
Transcrevo a seguir uma passagem ilustrativa do caráter do sofrimento a que nos referimos. "E, chegada a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados, e ele, com a sua palavra, expulsou deles os espíritos e curou todos os que estavam enfermos, para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías, que diz: "Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças" (Mt 8:16-17). Isto era verdadeira compaixão — o poder de interesse comum, que n'Ele era perfeito. Não havia n'Ele enfermidades ou fraquezas. Essas coisas de que, por vezes, se fala como de "fraquezas inocentes", no Seu caso, eram apenas provas de uma real, verdadeira e perfeita humanidade. Porém, por compaixão — por um perfeito interesse comum — "Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças" (Mt 8:17). Só um homem absolutamente perfeito podia ter feito isto. Nós podemos simpatizar com os outros: mas só Jesus podia tornar Suas as enfermidades e fraquezas humanas.
Logo, houvesse Ele tomado todas estas dores em virtude do Seu nascimento ou das Suas relações com Israel, e a família humana, nós teríamos perdido toda a beleza e preciosidade da Sua voluntária simpatia. Não podia haver lugar para ação voluntária se a necessi­dade absoluta lhe tivesse sido imposta. Mas, por outro lado, quando vemos a Sua inteira liberdade, tanto pessoal como relativamente, da miséria humana e daquilo que a produz, podemos compreender aquela perfeita graça e compaixão que O levou a "tomar sobre si as nossas enfermidades e levar as nossas doenças" no poder de verda­deira simpatia. Existe, portanto, uma manifesta diferença entre os sofrimentos de Cristo por voluntária simpatia com as misérias humanas e os Seus sofrimentos como substituto do pecador. Os primeiros são manifestos ao longo de toda a Sua vida; os últimos são restrigidos à Sua morte.

c) Sofrimento por Antecipação
Finalmente, temos de considerar os sofrimentos de Cristo por antecipação. Vemos a sombra tétrica da cruz projetar-se sobre o Seu caminho e produzir uma ordem aguda de sofrimento, que, não obstante, deve distinguir-se com tanta precisão do Seu sofrimento expiatório como o Seu sofrimento por amor da justiça se distingue do Seu sofrimento por simpatia. Tomemos como exemplo de prova uma ou duas passagens.
"E, saindo, foi, como costumava, para o monte das Oliveiras; e também os seus discípulos o seguiram. E, quando chegou àquele lugar, disse-lhes: Orai, para que não entreis em tentação. E apartou-se deles cerca de um tiro de pedra; e, pondo-se de joelhos, orava, dizendo: Pai, se queres, passa de mim este cálice, todavia não se faça a minha vontade, mas a tua. E apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava. E, posto em agonia, orava mais intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue que corriam até ao chão" (Lc 22:39-44). "E, levando Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer- se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte; ficai aqui e velai comigo... E; indo segunda vez, orou, dizendo: Meu pai, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade" (Mt 26:37-42).
Da leitura destes versículos é evidente que havia qualquer coisa em perspectiva que o bendito Senhor nunca havia encontrado antes. Estava sendo cheio um "cálice" para Si do qual nunca tinha bebido. Se tivesse carregado com o pecado durante toda a Sua vida, qual a razão dessa intensa agonia ante o pensamento de entrar em contato com o pecado e ter de suportar a ira de Deus devido ao pecado? Que diferença havia entre Cristo no Gêtsemani e Cristo no Calvário, se Ele carregou com o pecado toda a Sua vida? Existiu uma diferença essencial! Mas foi porque Ele não carregou com o pecado durante toda a Sua vida. Qual é, logo, a diferença? No Gêtsemani Ele estava antecipando a cruz! No Calvário, suportava-a. No Gêtsemani "Apareceu-lhe um anjo do céu que o confortava"; no Calvário foi desamparado por todos. Não houve ali ministério dos anjos. No Gêtsemani dirigiu-se a Deus como "Pai", gozando assim a comunhão desse inefável parentesco; mas no Calvário clama: "Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste? " Aqui Aquele que leva sobre Si o pecado olha para cima e vê o trono da Justiça eterna envolvo em nuvens carregadas e o semblante da santidade inflexí­vel desviado d'Ele porque estava sendo "feito pecado por nós".
O leitor não terá dificuldade em prosseguir este assunto por si mesmo. Poderá traçar pormenorizadamente as três espécies de sofrimento da vida de nosso bendito Senhor e fazer distinção entre eles e os sofrimentos da Sua morte — os Seus sofrimentos pelo pecado. Verá como, depois de os homens e Satanás terem feito o pior que podiam restava ainda uma espécie do sofrimento que era perfeitamente único no seu gênero, ou seja, às mãos de Deus, por causa do pecado — o sofrimento como substituto do pecador. Antes de chegar à cruz, Ele podia olhar para cima e alegrar-se na luz clara do rosto de Seu Pai. Nas horas mais sombrias sempre encontrara um auxílio certo nas alturas. O caminho que trilhava na terra era escabroso. Como poderia ser de outra maneira num mundo onde tudo estava em oposição direta à Sua natureza santa e pura? Ele teve de suportar a "contradição dos pecadores contra Si mesmo". Teve de suportar a afronta dos que se opunham a Deus. O que não teve Ele de suportara Foi mal compreendido, mal interpretado, injuria­do, difamado, acusado de estar fora de Si e de ter demônio. Foi traído, negado, abandonado, escarnecido, esbofeteado, cuspido, coroado de espinhos, expulso, condenado e cravado entre dois malfeitores. Todas estas coisas Ele sofreu às mãos dos homens juntamente com os terrores indizíveis com que Satanás atormentou o Seu espírito; mas, deixai-me repetir mais uma vez e com ênfase, depois de os homens e Satanás terem esgotado o seu poder e inimizade o nosso bendito Senhor e Salvador tinha de suportar alguma coisa compa­rada com a qual tudo o mais era como nada, e isto era a ocultação da face de Deus — as três horas de trevas e terrível escuridão, durante as quais sofreu aquilo que ninguém senão Deus pode conhecer.
Ora, quando a Escritura fala de termos comunhão com os sofrimentos de Cristo, refere-se, simplesmente, aos Seus sofrimen­tos por amor da justiça — aos Seus sofrimentos às mãos dos homens. Cristo sofreu pelo pecado, para que nós não tivéssemos de sofrer por ele. Sofreu a ira de Deus, para que nós não tivéssemos de sofrê-la. Este é o fundamento da nossa paz. Mas pelo que respeita aos sofrimentos infligidos pelos homens, descobrimos sempre que quanto mais fielmente seguirmos as pisadas de Cristo, mais sofreremos nesse sentido; porém, isto é um assunto de privilégio, uma mercê, uma honra (veja-se Fp 1:29-30). Andar nos passos de Cristo — gozar da Sua companhia, ter parte na Sua simpatia, são privilégios dos mais elevados. Quão bom seria que todos nós os aproveitássemos me­lhor! Mas, infelizmente, contentamo-nos em passar sem eles — contentamo-nos, à semelhança de Pedro, em "seguir de longe" — de nos mantermos à distância do Cristo desprezado e sofredor. Tudo isto é, indubitavelmente, um grande privilégio. Tivéssemos nós apenas um pouco mais de comunhão com os Seus sofrimentos, e a nossa coroa resplandeceria com maior brilho na visão da nossa alma. Quando fugimos aos sofrimentos de Cristo privamo-nos da pro­funda alegria da Sua companhia e também do poder moral da esperança da Sua glória futura.

A Parte dos Sacerdotes
Havendo examinado os ingredientes que compunham a oferta de manjares e as diversas formas em que era oferecida, só nos resta aludir às pessoas que participam dela. Estas eram o chefe e os membros da família sacerdotal. "E o que sobejar da oferta de manjares será de Arão e de seus filhos; coisa santíssima é, de ofertas queimadas ao Senhor" (versículos3e 10). Assim como o holocausto, como já frisamos, os filhos de Arão são apresentados como figuras de todos os verdadeiros crentes, não como pecadores convictos, mas como sacerdotes em adoração, assim na oferta de manjares encontramo-los alimentando- se do que sobejava daquilo que havia sido posto, por assim dizer, sobre a mesa do Deus de Israel. Isto era um elevado e santo privilégio. Ninguém senão os sacerdotes podia usufruí-lo. E o que está estabelecido, com grande clareza, na "Lei da oferta de manjares", que passamos a reproduzir por completo. "E esta é a lei da oferta de manjares: um dos filhos de Arão a oferecerá perante o Senhor diante do altar. E tomará o seu punho cheio da flor de farinha da oferta e do seu azeite e todo o incenso que estiver sobre a oferta de manjares; então, o queimará sobre o altar; cheiro suave é isso, por ser memorial ao Senhor. E o restante, dela comerão Arão e seus filhos: asmo se comerá no lugar santo; no pátio da tenda da congregação o comerão. Levedado não se cozerá; sua porção é que lhes dei das minhas ofertas queimadas; coisa santíssima é, como a expiação do pecado e como a expiação da culpa. Todo o varão entre os filhos de Arão comerá dela estatuto perpétuo será para as vossas gerações das ofertas queimadas do Senhor; tudo o que tocar nelas será santo" (Lv6:14-18).
Aqui, pois, é-nos dada uma bela figura da Igreja alimentando- se no "lugar santo", no poder da santidade prática, das perfeições do "Homem Cristo Jesus". Esta é a nossa porção por meio da graça de Deus; mas temos de lembrar que é para ser comida com pão "asmo". Não podemos alimentar-nos de Cristo se estamos condescendendo com o mal. "Tudo que tocar nela será santo". Além disso, deve comer-se "no lugar santo". A nossa posição, os nossos costumes, as nossas pessoas, as nossas relações, devem ser santos, antes de poder­mos alimentar-nos da oferta de manjares. Finalmente, lemos que "todo o varão entre os filhos de Arão comerá dela". Quer dizer, é necessário verdadeira energia sacerdotal, segundo o pensamento divino a seu respeito, para se apreciar esta santa porção "Os filhos de Arão" realçam a idéia de energia na ação sacerdotal. As suas "filhas" representam debilidade nessa mesma ação (veja Nm 18:8-13). Havia algumas coisas que os filhos podiam comer e que as filhas não podiam. Os nossos corações deveriam desejar ardentemente a medida mais elevada de energia sacerdotal, a fim de podermos desempenhar as mais elevadas funções sacerdotais e participar da ordem mais elevada do alimento sacerdotal.
Em conclusão, devo acrescentar que, visto que somos feitos, mediante a graça, "participantes da natureza divina", podemos, se vivermos na energia dessa natureza, seguir as pisadas d Aquele que é prefigurado na oferta de manjares. Se nos despojarmos do ego, cada um dos nossos atos poderá emitir um cheiro suave para Deus. Os mais insignificantes assim como os mais importantes serviços podem, pelo poder do Espírito Santo, representar o bom perfume de Cristo.
Fazer uma visita, escrever uma carta, exercer o ministério público da Palavra, dar um copo de água fria a um discípulo do Senhor ou uma moeda a um pobre, sim, até os atos vulgares de comer e beber, podem todos exalar o perfume suave do nome e graça de Jesus.
Assim também se tão-somente a natureza for mantida no lugar da morte, poderá manifestar-se em nós o que não é corruptível, até a própria conversação temperada com o "sal" da permanente comu­nhão com Deus. Porém, falhamos e faltamos em todas estas coisas. Entristecemos o Espírito de Deus na nossa linha de conduta. Somos propensos a ser egoístas ou a procurar os louvores dos homens nos nossos melhores serviços, e assim deixamos de "temperar" a nossa conversação. Daí, a nossa deficiência em "azeite", "incenso" e o "sal"; enquanto que, ao mesmo tempo, existe a tendência para alterar o "fermento" e permitir que se manifeste "o mel" da natureza. Só houve uma "oferta de manjares" perfeita; e, bendito seja Deus, estamos aceites n'Ele. Somos filhos do verdadeiro Arão; o nosso lugar é no santuário, onde podemos alimentar-nos com a santa porção. Lugar ditoso! Ditosa porção! Possamos nós apreciá-la mais do que o temos feito! Que os nossos corações estejam mais desinteressados pelo mundo e aprofundados em Cristo. Que os nossos olhos estejam tão fixos n'Ele, que não haja lugar em nós para os atrativos da cena que nos rodeia nem tão-pouco para as mil e uma circunstâncias mesquinhas da nossa vida, que perturbam o coração e embaraçam a mente.
Regozijemo-nos em Cristo, tanto à luz brilhante do sol como nas trevas; quando a brisa suave do verão se faz sentir à nossa volta, e quando rugem as tempestades do inverno ao longe; quando vagamos sobre a superfície de um tranqüilo lago, ou somos sacudi­dos sobre o mar encapelado. Graças a Deus! "Achamos aquele" que será para sempre a nossa porção abundante. Passaremos a eternidade contemplando as perfeições divinas do Senhor Jesus. Os nossos olhos nunca mais serão desviados d'Ele, uma vez que o tivermos visto tal qual Ele é.
Que o Espírito Santo possa operar poderosamente em nós para nos fortalecer "no homem interior". Que Ele nos habilite a alimentarmo- nos com a perfeita oferta de manjares, com cujo memorial o próprio Deus se tem alimentado! Este é o nosso santo e feliz privilégio. Que o possamos realizar ainda mais amplamente!

Nenhum comentário: